Um conto por dia: 7 de 100 – Tem mulher que gosta

Continuação do conto 5.

Todos os dias, mais ou menos no mesmo horário, o cortiço inteiro ouvia o mesmo barulho. A sinfonia do horror, composta por vidros quebrando e gritos de “por favor, pare” e “eu vou te matar” ecoava pelos becos da vizinhança suja, com ratos que passavam entre os pés de quem caminhava pelas calçadas que estavam sempre úmidas – culpa de uma obra pública mal feita.

O cortiço inteiro cheirava a mofo. Um apartamento, que nada mais era que um como único onde famílias se amontoavam, custava quatrocentos reais por cada família brasileira. Para imigrantes estrangeiros, o dono do imóvel cobrava seiscentos, e justificava que os indiozinhos (bolivianos) e pretinhos (haitianos) poderiam ser perigosos se achasse que a vida aqui é fácil, e inclusive soltou uma risada sarcástica quando soube que um dos haitianos não voltaria mais para casa – tivera o pescoço cortado com um caco de vidro no centro da cidade. As câmeras de segurança flagraram dois rapazes neste dia. Um segurou o homem negro enquanto o outro rasgou sua garganta. Corre boato de que se tratava do filho e do sobrinho do chefe de redação de um dos jornais mais importantes do local, mas não puderam comprovar, as imagens curiosamente sumiram.

De volta ao cortiço, que agora tinha um haitiano a menos, os gritos de ameaça e pedido por clemência se repetiam, e todos os vizinhos sabiam do que se tratava.

Dentro da casa vivia uma família. A esposa Marli, o marido Kléber e o filho pequeno do casal, João Guilherme. A família ainda tinha uma outra filha, Martina, de treze anos, que a Marli despachou para morar com a avó.

O quarto era dividido em três áreas separadas por uma parede de compensado. Uma cozinha, uma salinha e um quarto onde o casal e a criança dormiam. Mas toda noite o pai colocava o colchão de João Guilherme na sala para ficar a sós com Marli, onde mantinha relações sexuais com ela a força, ignorando as súplicas da mulher para que ele parasse. Quando a esposa falava com mais veemência que não queria, Kléber colocava seu corpo sobre o dela, uma mão segurando uma faca no pescoço de e outra tapando a boca da mulher, sussurrando “você é minha mulher, você tem obrigações comigo, eu sou seu homem, entendeu?”

Marli estava farta da situação, e um dia descobriu que estava grávida. Buscou ajuda em uma vizinha, explicou que nada daquilo era para estar acontecendo. Mas apenas ouviu: “fia, se Deus mandou é porque é pra ser”.

A caminho do trabalho de copeira em uma empresa, ela se deparou com cartazes colados no ponto de ônibus. Havia um desenho de uma moça com cara de brava, mostrando o bíceps, com uma frase em inglês que Marli não compreendia, e lia como estava escrito: iás uê cân. Um texto acompanhava a imagem. A dificuldade de leitura de quem cursar apenas até a segunda série fez com que ela demorasse um pouco para decodificar as frases. Dizia algo como:

“Mulher, liberte-se, você é livre. Se o seu companheiro controla suas roupas e suas amizades, não deixa você estudar e chora quando você quer terminar, você está sendo vítima de gas…gasli…”

Marli não entendeu que palavra era aquela, não fazia o mínimo sentido. O ônibus chegou. A noite, tudo acontecia novamente. Dia após dia a angústia aumentava, pensou em aborto, mas temia que algo desse errado. “O que será dos meus filhos?”. Os meses se arrastaram em sangue e berros, boletins de ocorrência contra o marido violento.

Os vizinhos assistiam ao show de horrores com expressão calma, mas sempre dispostos a darem algum veredicto.

“Todo esse tempo apanhando e não faz nada?”

“Tem mulher que gosta.”

“Deve ter aprontado, nenhum homem fica bravo assim do nada.”

Raiva era o que Marli sentia ao ouvir tais comentários. Durante os ataques, já havia perdido um dente, os apertões na garganta a faziam ter dificuldade de engolir, os socos no estômago a faziam andar curvada para frente. A gravidez avançara para o quarto mês. “Tarde demais, ela pensou”. Esse era mais um item que a deixava em pânico. Seu salário como faxineira era de seiscentos reais livres. O dono da empresa, um moço novo, dizia que era melhor assim do que assinar a carteira de rtabalho de sua empregada, porque ela acabaria recebendo menos. “Culpa desse governo corrupto que enfia imposto na gente de tudo quanto é jeito”. Kléber era catador de papel. Pelas ruas enfrentava humilhações de pessoas bem vestidas e juntava o material necessário para levar até empresas de reciclagem, e recebia cerca de vinte reais por dia.

Certo dia, ela descobriu uma ONG em seu bairro. Diziam que lá cuidavam de mulheres, mas ela sabia que precisaria ir escondida do marido. Conseguiu um tempo no sábado, após lavar as roupas da casa e preparar o almoço do João. As moças da ONG deram todo o apoio para que Marli procurasse a Justiça.

“Você tem pra onde ir, Marli?”

“Não, é difícil aceitarem com criança pequena.”

“Então você pode passar um tempo no meu apartamento, até as coisas se ajeitarem.”

A mão estendida era de Paula, voluntária da ONG. Ela resolveu ajudar a mulher a tomar as rédeas de sua própria vida. Enquanto as duas faziam as malas de Marli e João, a porta do apartamento no cortiço foi aberta com violência.

Kléber estava bêbado, e soube por outro homem do cortiço que sua esposa havia feito um boletim de ocorrência contra ele. Gritando, cheirando a bebida alcoólica e segurando uma toalha, ele foi para cima de Marli. Paula tentou impedir, mas o homem a agarrou pelo braço e a jogou para fora do apartamento, fechando a porta em seguida.

Com a toalha na mão, ele voltou-se novamente para Marli, gritando em consonância com os berros de Paula e os socos na porta. A toalha foi jogada contra a cabeça da esposa quatro vezes. O tecido sujo de sangue caiu, deixando revelar o martelo que estava escondido. Caída no chão, ela recebeu chutes na barriga, pernas e rosto.

João assistiu tudo.

Na casa grande, a madame dos brincos brilhantes revirou os olhos e soltou um suspiro impaciente quando descobriu que precisaria liberar sua nova empregada logo na segunda semana de trabalho, para que ela fosse ao enterro da mãe.

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