I’m standing here with no apologies

No one wants to dig that deep
Let me take you underneath

Baby better watch your step
Never mind what’s on the left
You gonna see things you might don’t wanna see
It’s still not that easy to me
Underneath

A red river of screams
Underneath
Tears in my eyes
Underneath
Stars in my black and blue sky
And underneath, under my skin,
Underneath, the depths of my sin
Look at me, now do you see?

Adam Lambert – Underneath

future past

Um conto por dia: 12 de 100 – Paradoxos do desamor

Enquanto o céu quebrava em lágrimas frias do lado de fora, eu permanecia no canto do teto escuro. Porque Thomas se esqueceu de pagar a conta de luz. Pelo menos é o que ele diz pros amigos que chegam. Ele acha que esquecimento é menos indigno que estar desempregado e ter que escolher entre pagar a conta de luz e comprar comida.

A vida segue sem Cecília.

Será que dessa vez ela iria embora mesmo?

Há meses Cecília vem sendo um tipo de fantasma, não está presente fisicamente, mas o assombra. Ele tem surtos, chora, passa dois ou três dias acordado com medo de dormir, quando adormece sonha que não irá mais acordar.

Certo dia, há muito tempo, Thomas estava sentado em um banco de plástico durante uma reunião de amigos. Cecília passou e beijou o topo de sua cabeça, enquanto aspirava seu cheiro.

“Estou tão feliz que você veio!”

A traição com a distância de quarenta centímetros era mais forte do que qualquer boa lembrança.

Fazia quase um ano que Thomas não lia um livro inteiro e não tinha oito horas de sono ininterruptas. Embora pra mim isso fosse patético, para ele fazia todo o sentido sentar no chão da sala quase sem móveis e contemplar o teto cheio das minhas teias. Às vezes ele chorava silenciosamente. Às vezes ele berrava como se suas pregas vocais fossem sofrer autocombustão.

O que, exatamente, eu posso fazer sobre isso?

Às vezes ele não queria falar nada. E eu ficava sem saber o que ele sentia, embora pudesse ver desespero em seus atos.

Mil batidas de coração por segundo

Quem acompanha o blog deve ter percebido que eu inventei escrever um conto por dia durante 100 dias. Eu não lembro se eu prometi que seriam cem dias corridos, mas fato é que eu deveria saber que minha ansiedade me faria procrastinar. Parei n décimo primeiro conto e não tenho vaga ideia de quando voltarei a escrever estas pequenas peças de ficção encharcadas de drama.

Hoje eu fiz um pouco daquela arrumação de final de ano, e achei meu diário escrito no ao de 2004, eu tinha de 16 pra 17 anos. Isso faz 11 anos. Eu escrevi quase todos os dias daquele ano, restando só umas 4 páginas em branco no último mês. Certo é que eu tinha muito mais tempo livre e muito menos coisas que me distraíam, mas ainda assim não deixo de me espantar e me frustrar com minha baixa produção textual atualmente. E essa pressão que ponho em mim mesma faz a minha respiração ficar mais ofegante e meu coração bater mais rápido.

Eu gostaria de ter uma resolução honesta de final de ano sobre escrever com mais frequência, mas acho melhor poupar a mim mesma e ao um pequeno grupo de amigos leitores de mais essa frustração.

Eu voltarei com os contos. Não sei como nem quando, mas voltarei. Percebo que muito mais coisas se passam pela minha cabeça hoje do que há 11 anos, é claro, mas os dedos parecem não alcançar tanta velocidade, e já se cansam só de eu imaginar quanto tempo e quanto papel preciso. Costumo comentar com minha terapeuta e amiga, Ariadne, que minha cabeça é como uma daquelas casas do programa “Acumuladores” do Discovery Home and Health. Muita bagunça, muita sujeira e muita, mas MUITA coisa que precisa ser jogada fora com urgência para que os pensamentos possam circular, se sentar diante de um livro e absorver coisas novas. Preciso encontrar uma forma de destrancar essas janelas duras, pro mofo sair e dar lugar ao ar fresco.

É por isso que eu me merco. É tanta informação, o mundo pressiona de tal forma, que eu só queria ter o super poder de falar: PÁRA TUDO, PRECISO PENSAR UM POUCO!

Eu ainda estou aqui

Muita gente diz que não teria a paciência que eu tenho. Breaking news: eu sou das pessoas mais impacientes que eu conheço. Não é por paciência, é por sobrevivência.

Há dois anos, um homem em situação de rua parou minha mãe na porta das Lojas Americanas. Pediu que ela lhe comprasse uma barra de chocolate. Ele disse: Por favor, moça, me compra uma barra de chocolate? É natal e eu tô cansado de comer comida do lixo.

Esse ano, em uma manhã chuvosa, eu amaldiçoava a vida, porque a chuva havia molhado meus pés, e os carros passavam perto da calçada e jogavam água em mim. Xinguei internamente deus (ou seja lá quem controla essa matrix). Em seguida passei por um homem, também morador de rua, debaixo da chuva torrencial ele vasculhava lixeira e comia restos encharcados do que um dia fora comida.

10 anos atrás eu tinha 3 reais em mãos e precisava escolher se comprava comida ou pagava a passagem da faculdade. Meu vizinho dividia as compras de mercado comigo, itens que eu não podia comprar, como carne e ovos.

Mês retrasado assisti uma moça levando seu cão pra passear e fazer cocô em um arbusto onde um morador de rua dormia.

A minha rua ganhou, onde antes era uma escola infantil, um abrigo de refugiados. Lotado de homens, mulheres e crianças, quando passam pela gente, baixam a cabeça com uma expressão óbvia de medo.
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Todas essas situações me fazem nunca esquecer de onde eu vim e o mundo em que eu vivo. Não importa o preço do batom que eu uso hoje ou o número de diplomas que eu já pendurei na parede.
Isso tudo é pra gente repensar bem naquilo que chamamos de exagero. As pessoas com frequência me perguntam como eu aguento e se eu não canso dessa vida enfiada em movimentos sociais. Mas como bem disse meu amigo Ibu Lucas quando nos encontramos: isso pra mim não é uma escolha, porque eu já nasci na linha de fogo, nas trincheiras de guerra. Não é uma opção sair da luta. Eu estou até o pescoço nisso. E, ainda que eu não tenha talento pra Mulher Maravilha e não possa salvar o mundo (nem tenho essa pretensão), não me é possível permanecer indiferente. Ao passo que cozinho um prato para o natal, acho impossível não pensar naqueles que permanecerão vasculhando latas de lixo atrás de algo que os permita sobreviver mais um dia. Não é que eu ache que tenhamos que abrir mão de nossas vidas, mas de prestar atenção ao outro. É sermos conscientes de que nosso modo de vida pode, de alguma forma, corroborar para que essa miséria permaneça, e isso não é para culpar indivíduos, e sim nos impelir a não nos acostumarmos com o sofrimento.

Esse post é para quem acha tudo muito extremo saber que extremismo pode ser tática de sobrevivência.

Não é para nos tornarmos cinzentos e pararmos de nos divertir. É para pensarmos. Sobre dinheiro, sobre consumo, sobre como coisas básicas como dormir em uma cama e tomar banho ainda são privilégio.

É não se conformar com migalha de Haddad que enfeita o centro e esconde sujeira pra debaixo do tapete da periferia, dizendo que “pelo menos ele fez”. Fez marketing, isso sim.
É pra não se conformar com palavra fofa de Duvivier, que usa boné do MST, cede sua coluna uma vez ao ano pra alguma mulher pra falar que apoia as mulheres, mas roteiriza programa de TV que faz piada com pobres, mulheres trans, gordos e negros, mas ok, porque ele é “gênio” na coluna da Folha.

É pra não chamar de “mãe” a pessoa que ocupa o máximo poder do país por ser uma mulher, mas que recuou para a bancada evangélica sobre decisões que influenciam a vida de todas as mulheres do país, sob pretextos e crenças que seguimos compulsoriamente.

É pra não se conformar com qualquer namastê que te soltem. “Sou a favor do Feminismo, mas não essas extremistas que mostram os peitos” <- é pra parar de repetir esse tipo de asneira. Extremo é ver mulher morrendo de aborto clandestino, de fome com filhos pra sustentar, de tristeza ao ver seus filhos mortos pela polícia.

É pra parar de ter preguiça de “textão” e não se referir pejorativamente a materiais com mais de 2 parágrafos, e usufruir o prazer da curiosidade.

O mundo não é imutável. Assim como ele é assim hoje, ele pode mudar. Pode nunca ser o que sonhamos, mas pode ser menos escroto, hostil e assassino.

Um conto por dia: 11 de 100 – Balde de merda e sangue

Thomas parecia estar sendo sufocado por um saco de plástico, mas era só seu coração batendo mais rápido do que deveria. Cada dia era como um novo desafio para manter-se vivo. A tensão que precedia a grande conversa mexia com seu corpo todo: seus intestinos que estavam se liquidificando, seu cérebro que parecia maior do que era, e por isso sofria mais pressão da caixa craniana, seu coração de maratonista sem uma maratona, e seus pulmões na iminência de uma explosão. A dor, entretanto, era insuportavelmente maior se ele se limitasse apenas a esperar.

Mas esperar era justamente o que ele vinha fazendo havia mais de trezentos e sessenta e cinco dias.

Para escapar da loucura que estava sempre à espreita, prestes a se aproveitar de uma brecha de sua lucidez, Thomas ocupava seu tempo com o que quer que fosse. Trabalho, criatividade, álcool. E ele não gostava dos comerciais de cerveja que mostravam pessoas felizes, porque aquilo escondia o real propósito da droga: a anestesia. A fuga de uma vida louca e imunda, de pessoas que passavam dias presas em escritórios frios, padecendo de carência de vitamina D, aguardando ansiosamente o toque das dezoito horas de sexta-feira, para poderem gastar parte do salário em drogas lícitas, planejando férias caras demais em datas que ainda estavam distantes demais. Ou planejar uma dívida de vinte e cinco anos em um imóvel, porque o âncora do telejornal soltou mais uma matéria que causa medo.

Thomas engasgou com um pouco de sangue. Mordera a língua sem querer, enquanto deglutia goles de saliva com sabor de desespero.

Ele fez o sinal da cruz. Não era um homem de fé. Mas lembrou que era o sinal que sua avó fazia quando não sabia mais o que fazer.

Um conto por dia: 10 de 100 – A falha

– Thomas, por onde você andou todo este tempo?

– Eu não sei, eu tive uma bebedeira daquelas, mas foi só álcool, juro. Eu não tinha comido nada, e ai você sabe… juntou tudo. Aquela criatura que lhe causou problemas não era eu. Aliás, faz tempo…

– Faz tempo que você não é você? – completou

– É, isso mesmo. Faz tempo que eu não sou eu. Eu sou frio, eu corto, eu dilacero, eu faço sangrar, a minha lâmina destrói tudo ao redor. Eu sou a redenção, de mim mesmo.

A lembrança era forte, mas ele tentava não se afetar por isso.

Os gritos tornaram-se tão fortes que a fizeram gritar de terror ao mesmo tempo em que fechava os olhos com muita força. Precisava sair dali tão logo terminasse seu dever.

Thomas estava delirando.

Ele parecia estar em uma viela de paralelepípedos, com construções baixas completamente destruídas, como atingidas pela guerra, com paredes cinzentas. Havia ratos tão imensos e monstruosos como os que ele pensava existirem apenas em sua imaginação, com grandes olhos vermelhos de ódio. O lodo onde pisava sujava ainda mais seus pés descalços, ele desejou não olhar mais para si mesme. Ele não sabia como respirar num lugar tão fétido. Bolas de fogo caiam esporadicamente, ele sentia extremos de frio e calor e os gemidos eram ainda mais angustiantes, porque ali ninguém pedia por misericórdia, apenas amaldiçoavam e invocavam o Mal o tempo todo. As pessoas eram assustadoras. Em sua maioria seminuas e completamente deformadas, cada qual com o destino que escolhera a si mesmo. Thomas olhou para o lado e viu um homem que atirava em seu próprio crânio repetidas vezes. A mulher ao lado pendurada por uma corda, com a coluna vertebral completamente exposta e disforme, balançando os pés que estavam a poucos centímetros do chão, numa dança macabra. A adolescente mais adiante com os punhos e pescoço completamente dilacerados. O jovem rapaz sem uma das pernas tinha as entranhas mastigadas por javalis tão grotescos quanto os ratos que faziam seu banquete eterno em mais dúzias de corpos abertos, os quais ainda permaneciam vivos e despejavam suas secreções nas calçadas. Em algumas janelas imundas de poeira, sangue e lodo, pessoas batiam nos vidros, como loucos que não sabiam onde estavam. Eram gritos e choros de terror vindos de todos os lados. As gárgulas ao alto das edificações pareciam observar tudo num malévolo riso de satisfação pelo sofrimento alheio. A dor pungia e parecia como vapor no ar, impregnando todo e qualquer canto de todos os sentimentos ruins existentes no mundo.

Um conto por dia: 9 de 100 – Um grande espetáculo de nada

Já era a quinta ou sexta folha que S. amassava e jogava fora. Estava tentando escrever um romance, mas sua qualidade o fazia questionar se aquela era mesmo a vida que deveria seguir. O escritor é um viajante solitário. Anota ideias durante o banho, no meio da noite, durante um jantar ou qualquer outro momento não muito propício.

Às vezes, durante uma conversa com amigos. S. ficava avoado, como se não estivesse lá, o que irritava as pessoas ao seu redor. Mas não era desinteresse, era desespero. Internamente, ele sentia a clara sensação de estar explodindo, uma explosão por minuto. O estranho é que aquela sensação estava cada vez mais vívida.

“O que você tem, S.?”

“Azia, talvez.”

Ele nunca teve azia, mas achava que a sensação deveria ser exatamente aquela, a de possuir um vulcão dentro de si.

E foi assim que ele vomitou as duas garrafas de vinho que bebeu durante um jantar de abertura de uma exposição de seu melhor amigo.

Um conto por dia: 8 de 100 – Os amantes insones

A hora mais silenciosa da noite faz os barulhos internos ecoarem pela sua cabeça de maneira mais intensa.  A cidade inteira parece dormir, menos você. E quanto mais avança o ponteiro do relógio, maior a tensão sobre como será o despertar no dia seguinte.

Também é a hora em que todas as engrenagens mentais se tornam mais rápidas, e os questionamentos começam. Onde eu vou parar? Como cheguei até aqui?

Você deita para dormir, e seu cérebro parece dizer que não vai rolar, porque nada é mais importante do que enfrentar seu próprio monstro de dentro, nem mesmo as necessárias horas de sono. É o momento de revirar o amontoado de tralhas nessa casinha, onde somos todos acumuladores, empilhando amarguras, que sujam a felicidade, que ficam embaixo de montanhas de entulhos de dor.

E você sabe que todos sofrem, mas não faz ideia do que se passa na cabeça de quem ocupa a cama no apartamento ao lado.

Quanto mais você se preocupa, menos você dorme.

insonia

Um conto por dia: 7 de 100 – Tem mulher que gosta

Continuação do conto 5.

Todos os dias, mais ou menos no mesmo horário, o cortiço inteiro ouvia o mesmo barulho. A sinfonia do horror, composta por vidros quebrando e gritos de “por favor, pare” e “eu vou te matar” ecoava pelos becos da vizinhança suja, com ratos que passavam entre os pés de quem caminhava pelas calçadas que estavam sempre úmidas – culpa de uma obra pública mal feita.

O cortiço inteiro cheirava a mofo. Um apartamento, que nada mais era que um como único onde famílias se amontoavam, custava quatrocentos reais por cada família brasileira. Para imigrantes estrangeiros, o dono do imóvel cobrava seiscentos, e justificava que os indiozinhos (bolivianos) e pretinhos (haitianos) poderiam ser perigosos se achasse que a vida aqui é fácil, e inclusive soltou uma risada sarcástica quando soube que um dos haitianos não voltaria mais para casa – tivera o pescoço cortado com um caco de vidro no centro da cidade. As câmeras de segurança flagraram dois rapazes neste dia. Um segurou o homem negro enquanto o outro rasgou sua garganta. Corre boato de que se tratava do filho e do sobrinho do chefe de redação de um dos jornais mais importantes do local, mas não puderam comprovar, as imagens curiosamente sumiram.

De volta ao cortiço, que agora tinha um haitiano a menos, os gritos de ameaça e pedido por clemência se repetiam, e todos os vizinhos sabiam do que se tratava.

Dentro da casa vivia uma família. A esposa Marli, o marido Kléber e o filho pequeno do casal, João Guilherme. A família ainda tinha uma outra filha, Martina, de treze anos, que a Marli despachou para morar com a avó.

O quarto era dividido em três áreas separadas por uma parede de compensado. Uma cozinha, uma salinha e um quarto onde o casal e a criança dormiam. Mas toda noite o pai colocava o colchão de João Guilherme na sala para ficar a sós com Marli, onde mantinha relações sexuais com ela a força, ignorando as súplicas da mulher para que ele parasse. Quando a esposa falava com mais veemência que não queria, Kléber colocava seu corpo sobre o dela, uma mão segurando uma faca no pescoço de e outra tapando a boca da mulher, sussurrando “você é minha mulher, você tem obrigações comigo, eu sou seu homem, entendeu?”

Marli estava farta da situação, e um dia descobriu que estava grávida. Buscou ajuda em uma vizinha, explicou que nada daquilo era para estar acontecendo. Mas apenas ouviu: “fia, se Deus mandou é porque é pra ser”.

A caminho do trabalho de copeira em uma empresa, ela se deparou com cartazes colados no ponto de ônibus. Havia um desenho de uma moça com cara de brava, mostrando o bíceps, com uma frase em inglês que Marli não compreendia, e lia como estava escrito: iás uê cân. Um texto acompanhava a imagem. A dificuldade de leitura de quem cursar apenas até a segunda série fez com que ela demorasse um pouco para decodificar as frases. Dizia algo como:

“Mulher, liberte-se, você é livre. Se o seu companheiro controla suas roupas e suas amizades, não deixa você estudar e chora quando você quer terminar, você está sendo vítima de gas…gasli…”

Marli não entendeu que palavra era aquela, não fazia o mínimo sentido. O ônibus chegou. A noite, tudo acontecia novamente. Dia após dia a angústia aumentava, pensou em aborto, mas temia que algo desse errado. “O que será dos meus filhos?”. Os meses se arrastaram em sangue e berros, boletins de ocorrência contra o marido violento.

Os vizinhos assistiam ao show de horrores com expressão calma, mas sempre dispostos a darem algum veredicto.

“Todo esse tempo apanhando e não faz nada?”

“Tem mulher que gosta.”

“Deve ter aprontado, nenhum homem fica bravo assim do nada.”

Raiva era o que Marli sentia ao ouvir tais comentários. Durante os ataques, já havia perdido um dente, os apertões na garganta a faziam ter dificuldade de engolir, os socos no estômago a faziam andar curvada para frente. A gravidez avançara para o quarto mês. “Tarde demais, ela pensou”. Esse era mais um item que a deixava em pânico. Seu salário como faxineira era de seiscentos reais livres. O dono da empresa, um moço novo, dizia que era melhor assim do que assinar a carteira de rtabalho de sua empregada, porque ela acabaria recebendo menos. “Culpa desse governo corrupto que enfia imposto na gente de tudo quanto é jeito”. Kléber era catador de papel. Pelas ruas enfrentava humilhações de pessoas bem vestidas e juntava o material necessário para levar até empresas de reciclagem, e recebia cerca de vinte reais por dia.

Certo dia, ela descobriu uma ONG em seu bairro. Diziam que lá cuidavam de mulheres, mas ela sabia que precisaria ir escondida do marido. Conseguiu um tempo no sábado, após lavar as roupas da casa e preparar o almoço do João. As moças da ONG deram todo o apoio para que Marli procurasse a Justiça.

“Você tem pra onde ir, Marli?”

“Não, é difícil aceitarem com criança pequena.”

“Então você pode passar um tempo no meu apartamento, até as coisas se ajeitarem.”

A mão estendida era de Paula, voluntária da ONG. Ela resolveu ajudar a mulher a tomar as rédeas de sua própria vida. Enquanto as duas faziam as malas de Marli e João, a porta do apartamento no cortiço foi aberta com violência.

Kléber estava bêbado, e soube por outro homem do cortiço que sua esposa havia feito um boletim de ocorrência contra ele. Gritando, cheirando a bebida alcoólica e segurando uma toalha, ele foi para cima de Marli. Paula tentou impedir, mas o homem a agarrou pelo braço e a jogou para fora do apartamento, fechando a porta em seguida.

Com a toalha na mão, ele voltou-se novamente para Marli, gritando em consonância com os berros de Paula e os socos na porta. A toalha foi jogada contra a cabeça da esposa quatro vezes. O tecido sujo de sangue caiu, deixando revelar o martelo que estava escondido. Caída no chão, ela recebeu chutes na barriga, pernas e rosto.

João assistiu tudo.

Na casa grande, a madame dos brincos brilhantes revirou os olhos e soltou um suspiro impaciente quando descobriu que precisaria liberar sua nova empregada logo na segunda semana de trabalho, para que ela fosse ao enterro da mãe.

Um conto por dia: 6 de 100 – O cão praieiro

Na casa quente e com pouca ventilação moravam Maria e seu cão, um pastor alemão com a personalidade de uma lontra e o humor de uma criança. Seu nome era Luke Skywalker. Ou só Luke. Uma orelha estava sempre caída, e os olhos redondos o faziam parecer sempre entusiasmado para absolutamente tudo.

Ser um cachorro era o máximo. Ele podia dormir onde quisesse, não tinha que limpar seus próprios pelos no chão, e sempre recebia coçadas na pança quando virava as patas para cima na frente da humana de estimação que ele – achava que – criava, ou dos amigos dela.

Um dia, porém, Luke percebeu um clima tenso na casa. Sua humana de estimação estava sentada na cadeira em frente a um livro deitado de metal escuro, que emitia luz e mudava de cor. O livro tinha quadradinhos onde Maria batia os dedos compulsivamente. Ele sempre a via fazer isso com tranquilidade, mas naquele dia ele notara que a cor do rosto dela mudou de cor de areia para cor de pimentão. Quando subiu no sofá que ficava atrás da cadeira de Maria, ele viu que ela estava olhando para fotografias de praias no tal livro. Ele não sabia ler, mas conhecia praias de filmes e conseguia entendê-la quando ela falava algo.

“Levar-cachorro-praia” “cachorro-praia” “quero”.

Algumas palavras ele não entendia bem. Ela fechou o livro de metal com força e saiu.

Luke ficou sem entender nada, e ao ouvir latidos dos cães vizinhos, olhou pela janela. A grama do vizinho parece sempre mais verde, e assim os outros animais pareciam muito mais felizes. Luke teve uma ideia. Foi até a porta do quarto de Maria, pedir para que ela o levasse para passear. Foram muitas as tentativas.

Patinha no braço de Maria. Praia, Maria!

“Agora não, Luke”

Cara de cão abandonado. Praia, Maria?

“O que você quer? Tá com fome? Tem comida no seu pratinho”

Latido seguido de um pulo para subir na cama. PRAIA, PRAIA, PRAIA, CARA, PRAIA AGORA!

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Nada. O jeito era se virar. O cachorro pulou o muro baixo e correu para a rua, desviando do vendedor de algodão doce, o moço em forma de triângulo invertido que tomava whey protein, dez crianças que chutavam uma bola de meia.

Quando avistou a areia, seu coração canino disparou. PRAIA PRAIA PRAIA PRAIA CARAMBA PRAIA É MUITO LEGAL. Ele parecia uma bola de pelos gigante em muito alta velocidade.

Quando Luke se jogou no mar, se sentiu ainda mais feliz, se é que isso era possível. Subiu na prancha de um banhista que se assustou com a repentina aparição do bicho, e pôs-se a surfar, de uma forma meio desajeitada, em ondas mais baixas que uma criança pequena. Mas para ele aquilo era uma aventura sem precedentes.

who wants to live forever???

who wants to live forever???

Ele se assustou quando viu um homem grande e com expressão raivosa vindo em sua direção, parecendo querer dizer que Luke não deveria estar ali. Mas o cão anarquista não reconhecia comandos furiosos, e desatou a correr pela praia, fazendo o homem quase perder o fôlego e desistir.

Can't touch this! tãnãnãnã

Can’t touch this! tãnãnãnã

Foi a melhor tarde na vida do cachorro mais legal do mundo.

E Maria?

Ah, Maria não viu nada disso. Estava ocupada brigando na internet com quem explicava por que cães não são permitidos em praias.

weeeeeeeeeee

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